Cachaça em: "Nova demais para o caderninho?"
Após longa ausência, Cachaça reaparece a visitar seu amigo, o Judeu. Uma pequena e recém-acordada bebezinha de oito meses, ao perceber uma inesperada movimentação na casa, abre-se em lágrimas - provocando silenciosa indignação no Cachaça, que se sente desamado pela infante. Revoltado e disposto a reciprocar o gesto, passa a fazer horríveis caretas e esgares, fazendo que a bebê chore novamente, agora sim com verdadeiro e indefeso pavor, precisando de muitos minutos no colo do pai para voltar a se sentir minimamente segura.
Cachaça pede para ligar a TV e sintoniza um canal de comentário esportivo, onde velhos obesos expressam em cadeia nacional suas auto-importante opiniões sobre times e atletas. O Judeu pede para o Cachaça tomar conta da pequenina, já refeita da desfeita (incríveis as crianças pequenas, que não guardam mágoa), para que possa preparar a tal papinha infantil. Cachaça estica uma das mãos na direção da bebê, mantém os olhos fixos na tv e dela não descuida, apesar de suas poucas oportunidades de apreciar o não tão raro mas para ele inédito espetáculo da alimentação infantil.
Tendo sido alimentada, a bebê inicia o processo inverso e precisa ter sua fralda trocada. Em meio à operação o Judeu solicita que o Cachaça deixe a TV por um momento e venha ajudá-lo, impedindo que a bebê role e caia do trocador, enquanto o pai procura uma roupinha limpa para sua cristalina princesa. Assim que se aproxima da cabeça da bebê e inicia sua vigília, o sujeito de nome de bebida alcoólica solta o mais desavergonhado peido da história, um horroroso som prolongado e úmido, seguido de estridente gargalhada. Para quem não conhece, tal gargalhada pode ser apenas descrita como uma pessoa arranhando um quadro negro com suas unhas e tendo um sincopado ataque epilético durante o processo.
Expulso do quarto cor-de-rosa que acabara de empestear sordidamente com seus ventos fecais, o Cachaça volta aliviado para o programa de TV, um especial mostrando bolas na trave ocorridas em partidas de ano bissexto. Aproveitando uma pausa no programa, o Cachaça responde à questões morais do Judeu, pontificando sobre gestos como representantes do intrínseco de cada ser humano. Encarnando misteriosamente um guru que trouxe apenas doçura e sentimentos bons à todas as vidas que tocou, saudosas e iluminadas por sua passagem, o Cachaça convence o Judeu que no caso em questão não basta sofrer privadamente, é necessário prestar solidariedade aos outros que sofrem. O Cachaça é uma famoso abraçador dos recém-enlutados - segundo complexo ritual de dizer-se a caminho e aparecer uma semana depois - e também famoso abraçador dos recém-falecidos, prática que mantém apesar de acusações plurais de necrofilia. Cachaça, um verdadeiro pólo atrator de injustiça, cercado de lentes de incompreensão, explica que não se trata de necrofilia mas sim, na maioria das vezes, apenas de necroternura, e que nenhum morto jamais reclamou.
Tendo recomeçado o programa televisivo, Cachá retorna a seu aspecto comatoso e o Judeu traz novamente sua bebê para a sala. Pacificada, a pequena já não chora, mas presta insuficiente atenção aos sons estilo "chamamento de potrinho" produzidos pelo Tio Cachaça, mais afim à cavalos e éguas que a seres humanos. Por sua vez este presta pouca atenção aos primeiros passinhos da vida menina de oito meses, ocorrendo bem ali em sua frente, ou mais tecnicamente, em sua diagonal, já que à sua frente outros idosos obesos debatem nostalgicamente outros jogadores e times de tempos em preto e branco.
Não se sabe se pela chegada do Clarque, pela preferência da bebê a este manifestada por largos sorrisos, ou se era chegado o horário de seu jogo de futebol na várzea da Marginal Tietê, o Cachaça encaminha-se para a saída, aplicando doloroso chute no gato com leucemia felina e lembrando-se de acrescentar a pequena bebê ao seu Pequeno Caderninho de Rancores, Ressentimentos e Mágoas®™, cujos trinta volumes poderão ser encontrados brevemente em uma livraria próxima a você...
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