terça-feira, 23 de junho de 2009

Eugene e Gregor

Eugene acordou e não sabia onde estava. Abriu os olhos e tudo estava branco. Abriu as antenas, metaforicamente, claro, e tudo cheirava a branco. Tentou se mexer e viu suas patas, dando-se conta que ainda tinha seu corpo. Mas onde estava? Tudo era tão branco que Eugene foi tomado de vertigem. Seu corpo amoleceu, também metaforicamente, afinal estamos falando aqui de um ser com exoesqueleto. Eugene largou-se tentando perceber a passagem do tempo mas esta não dava qualquer tipo de sinal externo e ele perdeu-se em sensações subjetivas, sem saber se teria passado uma hora, um dia, um ano.

Eugene lembrou-se que um dia, um ano, uma vida atrás, ouviu uma historia sobre um filme chamado "Feitiço do Tempo", em o cara tem que viver o mesmo dia todo dia até aprender umas coisas e o feitiço, ou maldição, se desfaz. Mas a história mesmo é que o ator do filme queria algo mais filosófico e escuro, e que em sua versão o protagonista passa nada menos que dez mil anos vivendo o mesmo idêntico dia. Eugene se deu conta que não tinha como ter idéia de quanto tempo passou ali, ou quanto tempo iria passar.

Quase que por hábito começa a andar. Costumava pensar melhor andando e o som dos seus vários passos, como um metrônomo, era uma forma de contabilizar o tempo, mas entre três e quatro mil acabava distraindo-se e perdia a conta. Ainda assim continuava a andar. Tinha medo de petrificar-se caso parasse, como ficava ansioso com o silêncio que seus passos preenchiam. Ele alternava o ritmo das patinhas, sem nunca começar a dançar, seu tipity-tapity não seria apropriado ali.

E depois de sabe-se lá quanto tempo, parecia muito, obstante ausência de montras, sentiu irrefreável necessidade de conversar. Arrancou um pedaço redondo de sua asinha, fez dois furos e segurou-a à sua frente com a antena, dizendo pra si mesmo que se o Robinson Crusoe tinha um Sexta-feira (não tinha), e o Náufrago tinha um Wilson, ele poderia ter alguém. Olhou bem para a cara de sonso do pedaço de asa e disse: vou chamá-lo de Gregor.

Gregor era um tanto calado mas ótimo ouvinte. Escutou com paciência a todas as histórias de Eugene, descobrindo que ele foi uma das primeiras baratas mutantes, que chegou a conhecer os seres humanos, que acreditava que alguns deles ainda estariam em sua pequena biosfera em órbita, que praticamente escolheu o vício em cigarros de osso como uma arma contra o tédio, e que daria uma patinha por um desses agora. Falou sobre as músicas que gostava, cantou, analisou as letras, disse que gostava da serendipidade de ouvir rádio e cantou músicas aleatórias, com direito a encenações de intervalos comerciais e vinhetas. Eugene cansou depois de um tempo e prossguiu em silêncio.

Um belo "dia", ou "noite", mesmo "momento" é uma palavra difícil de aplicar aqui, encontrou um rastro de patas. Exaltado, começou a gritar e chamar, sem resposta alguma. Era a primeira coisa que não fosse branca ou ele mesmo que via em, sabe-se lá, anos. Começou a seguir o rastro de pegadinhas pretas e tinha impressão que Gregor fazia caretas.


(continua)

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