segunda-feira, 23 de abril de 2007

Of Life and Death

Tudo a seu tempo.
Não foi hoje que Cho matou trinta e poucas pessoas na Virgínia.
Também não foi hoje que um Tuca Vieira viu um homem se jogar da ponte da dr Arnaldo.
Mas por alguma razão foi hoje que esses eventos me alcançaram.

Sábado fui assistir uma apresentação de literatura digital, Aya apresentou "Lala", excelente performance (já quanto a parte digital não vi nada. terei voltado a ser míope?). Carlos ofereceu uma rodada de tequila, que se multiplicou várias vezes e há anos eu não bebia assim. Por razões óbvias. No domingo a garçonete pergunta se eu quero outro suco. Eu peço um tiro na nuca. Ela era búlgara e muito bonita mas pouco misericordiosa e recusa o tal tiro.

Chegando no escritório pela manhã cedo à curiosidade de ver o polêmico vídeo do atirador de virgínia. E navego por hiperlinks associados à história. Não vou de modo algum defender o assassino, mas preciso dizer que ele não me parece tão alienígena, infelizmente.

Na minha história, quando criança, eu tb fui marginalizado. Teve um ano que eu apanhava quase todo dia no ônibus da escola. Minha irmã, três anos mais velha, não me defendia, ela era mais chegada aos ataques morais. E toda vez que eu tentei me defender, a agressividade piorava bastante.

Quando eu tinha doze anos e fazia aula de bar-mitzva, eu ja usava cabelo comprido e jeans rasgados, e apesar de me considerar maduro tinha cara, voz e tamanho de criança. Fazia karate mas não tinha como ser páreo contra vários moleques, todos maiores que eu. Mais de uma vez pularam em cima de mim como um grupo e rasgaram minha calça até o final. A palavra da autoridade local, o professor Nelson (de quem tenho saudades) foi algo do tipo "quem mandou usar essas calças rasgadas".

Possivelmente no mesmo ano, uma turma da escola resolve cortar meu cabelo. Consigo escapar umas duas ou três vezes. Aviso minha mãe: eu vou me defender. E no dia seguinte levo um RIDÍCULO canivetinho de unhas. De algum modo minha mãe deu pela falta do canivete e avisou a escola. A diretora veio confiscar em plena aula. Eu recuso: Se eles podem tentar cortar meu cabelo eu posso me defender. Sob risco de expulsão entrego a patética faquinha. A diretora avisa que eles não devem tentar cortar meu cabelo NA ESCOLA.

Um dos integrantes desse bando era um psicótico carente, possivelmente homossexual ainda sem sabê-lo. Esse passou o ano me humilhando em público, na frente da menina que eu gostava inclusive, incluindo extensivo uso de violência e terror psicológico. Neste ano, se eu pudesse fazer e não ser preso depois, eu teria matado o cara. Se pudesse pagar para que alguém o matasse, teria feito. Foi um ano de desespero. Me imaginei matando o cara muitas vezes. Muitas vezes mesmo.

Apenas muitos anos depois encontrei um estado de espírito em que, apesar do medo, pude enfrentar oponentes bem maiores que eu. O que foi uma grande transformação interior, tendo crescido tb apanhando do meu pai e da minha irmã, dois oponentes contra os quais era absolutamente impossível reagir (ou reagir sem apanhar ainda mais no fim das contas), realmente não tinha aprendido a lutar contra obstáculos maiores. Aprendi sim a ter muito medo. E obviamente eu batia no meu irmão menor.

Mas após anos de artes marciais, foi finalmente no kung-fu que aprendi a enfrentar (mesmo sem vencer) esse imenso e intransponível medo. E o batismo desse novo eu foi encarar o Apollo (campeão de vale tudo) e o professor dele (boxeador peso pesado + capoeira + judo), obviamente sem a menor chance de vitória, mas o importante era encarar. Foi só depois dessa época que deixei de imaginar encontrar meu antigo algoz na rua, e não estando impedido pelo atraso de entrada na adolescência (ou pelo puro medo), espancar o cara além dos limites do mau-gosto.

Quando entrei na faculdade, pretensos amigos vieram cortar meu cabelo numa festa. Estava em um chão de ladrilhos e chovia de leve. o primeiro veio na minha direção, estiquei o braço e o cara estava caído no chão. Disse "nem vem". O segundo veio com a tesoura, segurei na tesoura e torci os dedos do cara. Devia ter jogado a tesoura muro afora, mas deixei ela num canto, tipo, já venci, me deixem em paz. Meia hora depois vem outro imbecil. Tento repetir o truque da tesoura mas dessa vez não dá certo, e quando vejo tem sangue escorrendo no braço. Uma amiga me levou pro hospital, mas ela estava tão nervosa que a partir do meio do caminho eu mesmo fui dirigindo.

O cara de virgínia matou indiscriminadamente. Pessoas que não tinham nada a ver consigo, que meramente faziam parte da sociedade que o rejeitou. Nada justifica esse massacre, e parece que ele era doidinho da cabeça. Mas eu sei o que é ser arrastado para além dos limites. Eu sei o que é falar agora chega, não suporto mais, pela vigésima vez, apenas para ver a situação piorar ainda mais. Não vou advogar pelo assassino, afinal este é o papel do meu grande amigo, mas não consigo deixar de pensar que de alguma forma eu entendo algumas das coisas que ele sentiu. Gosto de pensar que mesmo se minha situação tivesse piorado terrivelmente, ainda assim eu não tomaria um caminho como o dele. Mas o fato é que não tenho certeza. Existe um ponto, ainda que diferente para cada pessoa, em que todo mundo quebra.

Passando de matar a morrer:
Navegando pela questão do massacre, acabei chegando em um link da Piaui, que traz como conexão um suicídio e a decisão do fotógrafo de tirar a foto e publicá-la, assim como a NBC sobre mostrar ou não o vídeo do assassino.

A história, que pode ser lida aqui, trata de um encontro entre o fotografo e um suicida em potencial, bem ali no meu bairro. De alguma forma esse encontro ressoou nos meus ossos e é quase como se eu tivesse sido ambos os personagens. A mulher do futuro suicida o havia deixado, levado as crianças e sumido. Ele sucumbiu ante a rejeição e desamor.

Eu já vi pessoas sentadas na beira e sei o horror que é. A vontade de sair correndo e a impossibilidade de fazê-lo. Para minha grande sorte ninguém se matou, com sucesso, na minha frente. E eu já estive na beira. Nunca pulei e acho (hoje, com dúvidas) que não pularia. Mas já testei a sorte e o destino, por exemplo no heliporto de um prédio de um amigo (naquela mesma sétima série.) Na beira do heliporto tinha uma cerca de arame diagonal, e nós corríamos e pulávamos nessa cerca com os dois pés. Cedendo uma queda de vinte e dois andares nos aguardaria. E em um misto de confiança e certeza que a cerca não romperia e um desejo oculto que ela se rompesse, pulávamos. Nessa época eu costumava pensar que se sofresse de uma doença terminal, meu fim escolhido seria saltar de para-quedas da maior altura possível. Sem para-quedas, claro. Depois do meu acidente sei que isso é tempo demais. Pulando de um avião rumo à morte certa, dá tempo de se arrepender e se achar um burro, tão burro que merecia ter pulado, tão merecedor que ainda bem que pulou e então se arrepender de novo (uma péssima hora para aprender a perdoar).

O cara da virginia matou 32 colegas. O cara da ponte pulou. A nbc exibiu o vídeo. O tuca escreveu um texto para expiar o fato de ter fotografado o corpo. Publicar a foto nem se compara a trazer indelevelmente a visão do salto na memória. Nada justifica o massacre (dos alunos da escola, do desamado self) mas esse é o mundo em que vivemos, em que escolhas impossíveis pairam no limite - e entre um horror e outro existe apenas o rodopiar de uma moeda.

1 intromissões:

Anônimo disse...

Tava precisando ler algo compridinho mas não muito e de conteúdo interessante, e além, bem escrito. Isso serviu muito bem ao propósito. Agora, tem como postar uma foto da garçonete búlgara?