“Nem me lembre!” disse Jambão, com a boca cheia de banana, olhando torto pro colega. “Nem me lembre”, repetiu, mastigando e brandindo a fruta ameaçadoramente. “Onde é que já se viu”? Jambão estava muito puto.
O Outro olha com nojo enquanto o colega mastiga de boca aberta. Nada contra os hábitos saudáveis, mas desde o dia em que sua esposa, com um estranho olhar, achou no seu cabelo um pedaço semi-mastigado, grudento, que talvez fosse banana, talvez jaca... Disso ele não lembrava. E sem a fruta exata não tinha coragem de dar o troco. Mas desde então tinha a fruta no cabelo atravessada na garganta. O que a esposa teria pensado? Ela não disse. Aliás andava bem quieta. Teria um amante?
Jambão continua seu discurso e um fiapo da banana voa pro chão. O Outro acompanha a trajetória com o olho e tem um arrepio de raiva. Pensava seriamente em soterrar aquela banana nariz adentro. Pof! Nos dias que Jambão estava especialmente agitado e pedaços recém-mordidos voavam como mísseis, o Outro sonhava com lindas marretas distorcendo exageradamente a idéia, a banana e a cara do colega.
Esse dia tinha sido pesado e lento. De início, Jambão quase não teve forças pra sair da cama, essa terrível batalha diária. Depois de pensar em todas as doenças disponíveis, foi até o espelho e disse, beatificado de mau-humor matinal, "Todo dia a mesma coisa". Mas não era verdade, mesmo que Jambão não visse diferença. Aliás Jambão poderia acordar com um rosto diferente a cada manhã e ainda assim não perceberia, nem se fosse o rosto do papa. E há quem diga que Jambão de fato acorda cada dia com um rosto diferente. Tem várias teorias sobre isso, desde rostos cultivados em laboratório, rohypnol e pessoas acordando sem rosto numa pia cheia de gelo até falta de banho mesmo. Ninguém nunca foi capaz de provar nada.
Ainda menos capaz de provar alguma coisa, qualquer coisa, estava o colega com sua esposa, na primeira (e última!) vez em que aceitaram um convite pra jantar daquele homem estranho. "Vamos lá em casa, eu vou preparar uma “comitchinha” que você vai ver só", disse Jambão ao mesmo tempo que beliscava a orelha e fazia um sinal de ok. Ou talvez indicasse que o prato do dia seria orelha, suspeita que invadiu indelevelmente o Outro desde esse convite.
A sorte do casal, para o desespero de anfitrião do pobre Jambão, é que a comida pegou fogo, juntamente com a cozinha, a área de serviço, as samambaias e a cortina da vizinha de cima, já que as chamas lamberam a parede de fora o suficiente pra cortina ficar metade queimada e o gato cair ali do quinto andar, em pé. Acabaram todos comendo pizza, menos o gato, que estava morto.
Mas o Outro encafifou. Ele conhecia bem aquele cheiro de quando um pedaço de carne cai na brasa do churrasco. E era esse mesmo cheiro que parecia vir do fogão. E o que será isso, encafifava, alheio à conclusão que mesmo se tinha carne na assadeira isso não significa absolutamente nada, nem orelhas.
Ninguém sabia muito sobre Jambão. E nem sobre o Outro, se é que isso importa. Os dois dividem uma sala no departamento mais obscuro da repartição. Não é apenas obscuro, mas também o único com porta de chumbo e válvulas de segurança. Quando os outros colegas tentam fazer visitinha, ou seja, matar um pouco de trabalho, são barrados pelo scanner de retina. Por alguma razão eles continuam sempre tentando. Alguns são eventualmente fritados pelo laser.
Os dois achavam graça nesses episódios, e trocavam sorrisos. Esse pequeno prazer era uma das poucas coisas que tinham em comum além da obscuridade. Mas eles não tinham a mais remota idéia do porquê daquele aparato todo. Uma vez o braço mecânico roubou o sanduíche de galinha do Outro, que tentou por horas e inutilmente recuperá-lo. Outra vez, roubou uma das bananas de Jambão, mas o braço devolveu assim que se deu conta. "Braço estúpido fica protegendo esse porco", o Outro pensava.
Jambão morava só. E quando a mulher vinha buscar o Outro no fim do expediente, ele achava gozado. Observava com uma mão no quadril e um sorriso estranho. Jambão ainda era do tipo que achava as coisas gozadas. Aliás, a mulher conseguia passar direto pelo sensor de retina. Jambão achava que ela deveria ter um papel maior no grande esquema das coisas, que ele trazia no bolso.
Depois disso resolveu convidar os dois pra um jantar em sua casa, como bom colega, pensava. Na entrada do apartamento, além de um elevador quebrado e algumas baratas, tinha uma planta com bundas de vagalume, que segundo Jambão, servia pra sensibilizar as pessoas contra a extinção do natal. Jambão achava o natal uma boa oportunidade. A verdade é que toda vez que ele vinha com uma idéia supimpa ou uma boa oportunidade a noite terminava na cadeia. Mas isso não fazia a menor diferença pra Jambão. A mente não se prende com grades e sim com vidro, ele dizia sem que ninguém tivesse a mais vaga idéia do que ele estava falando. As teorias dele eram todas nomeadas com trocadilhos incompreensíveis.
O Outro tinha uma filha que se chamava Passa. Também ninguém sabia a idade dela. Ninguém aparenta saber nada. Essa história se passa na ignorância. O Jambão a conheceu numa tarde de sol em que ela foi no escritório visitar o pai. Que safado esse Outro, pensou, olha que gatinha. Então o Outro disse “Jambão, apresento minha filha, Passa. Passa, grunf, Jambão.”
E é claro que o Jambão se apaixonou. Ou pelo menos foi o que todos pensaram, inclusive o próprio. Ele estava mais confuso que qualquer outra coisa, tanto quanto o fato de que a frase anterior não foi apagada por puro pânico. "O que está acontecendo, meu deus", uivava Jambão, abanando entusiasticamente os braços.
Quando ninguém já entendia mais nada, Theo Exmachina, o deus da máquina desce do ônibus que dirigia e diz "mas quer sair da rua, o meus senhores? PQP!!"
O Outro vai levar a filha em casa e Jambão tenta se concentrar no trabalho. Não conseguia. Ficava se perguntando se a guria passaria pela grande porta de aço... Então o Outro volta pro escritório (era perto) e vai logo dizendo, "Nada de idéias com a minha filha, Jambão. Nada de idéias!" E pensa ainda “ela pode dar pra quem quiser. Menos pra você.”
“Como assim, dar pra quem quiser?”, o Jambão pergunta. O Outro não sabe se os seus pensamentos foram lidos por Jambão, (será?) ou falados em voz alta por si mesmo, que afinal andava caducando. E o Jambão ficando nervoso e falando de boca cheia: “Pvalaí,daoq?e porgnhomque pra miinhão? Pourramg!”
Pra não incomodar sua recém-chegada úlcera, o Outro resolveu sair mais cedo nesse dia e foi pra casa. Não tinha ninguém lá. Deitou na cama e dormiu.
Perto do fim da tarde, Passa recebe um telefonema. É sua mãe, que diz pra ela ir buscar o pai no escritório, já ela estava com cólicas e pretendia ir pra casa mais cedo. Passa adorou a idéia de voltar ao escritório e nem falou com o guarda na entrada, foi direto ao elevador. O Jambão estava na sala do cafezinho, e quando viu Passa na ante-sala, chegando perto do scanner, engasgou tão profundamente que a banana saiu pelo nariz.
Nesse exato momento, o Outro dormia. E talvez por coincidência, tinha sonhos felizes, coisa que não tinha há tempos. Então a mulher chega em casa, já tomada de cólicas, vai pro quarto e grita, desesperada, “Meu deus, tem um alguém na minha cama!! O que o Outro vai dizer quando chegar!” Ela se aproxima sorrateiramente e dá-lhe uma sapatada tão forte na testa que a cama toda se ensangüenta, o Outro acorda vendo estrelas e corre confuso em direção ao escritório, caminho que seu corpo faz de cor.
"Sua filha Passa está morta, desintegrada pelos lasers da porta de aço", informam os guardas, de acordo com a nota deixada por Jambão. A porta parece estar lacrada agora, algo com o código vermelho de segurança, dizem. O Outro encosta a cabeça na porta e se prepara pra chorar, mas ao invés de chorar ele corre de volta pra casa e conta tudo pra mulher, que resolve ir averiguar essa história direitinho, chega no escritório, diz “lacrada o caralho, lacrada o caralho!!” e fica chutando a porta até que Jambão abre, todo despenteado. A mulher olha por trás dele e vê a filha vestindo o sutiã. Então corre de volta pra casa pra contar tudo pro marido, que a essas alturas está gangrenando a cabeça, por conta de um torniquete pra parar o sangramento na testa. Talvez precise amputar.
Nisso Passa e Jambão saem da sala, olham pra porta de ferro, e ele, que aquele dia estava com a cara do Rett Buttler, pergunta, “Blé, de quem é esse sangue aqui?” “Meu não é”, diz a menina com naturalidade, sem saber o que a espera pro jantar.