sexta-feira, 14 de julho de 2006

João, 2003

João saiu correu andou, de repente estava lá. Horas passadas, era longe pra burro e como uma mulher vai morar assim tão tão longe, nem ônibus tinha, mas João, ah João, João iria até o fim do mundo, e não ia mais apenas por ser o fim. E João chegou cedo.

A casa estava lotada de vazio, assim como quando as ausências se fazem sentir tão presentes. O único ser vivo da casa, um gato, planava lentamente pelo assoalho, e a samambaia, que até uma hora atrás era o outro ser vivo da casa, revelou-se vingativamente indigesta.

O vento, em todo lado como sempre está, passou por joão, pela casa, pelo gato e nem ligou. Vento não liga. O vento é dono do sol, que nasce pra todos mas é mais dele.

A mulher não estava onde deveria estar, e não que ela devesse estar em algum lugar ora essa, mas João sabia que ela estaria lá. E não estava, prova de que saber não basta. E em última instância nada basta, nem escrever, mas chega de vazios desse tipo, porque o único lacaniano da história é o gato, e gato não fala. Apenas – veja que irônico – mia laconicamente.

E sem nunca ter deixado de estar na presença do vento, e sem que o vento soubesse (vento não sabe) João sentiu-se muito só ao chegar naquela casa e encontrar apenas um gato estranho arrotando samambaia. João se deu conta de que o vento que o acompanhava chegaria nela também, se é que lá já não estava, e por dois segundos pensou em mandar uma mensagem pelo vento, como um neruda, mas logo desistiu. Vento não manda mensagem e se mandasse sabe-se lá o que chegaria. Todo mundo sabe que o vento distorce as palavras.

E só na casa, João tinha sono. O gato tinha ido sabe-se lá onde, mas tem dedo da samambaia na história. E quanto mais chegava o sono João percebia os lençóis brancos empoeirados sobre os móveis, as trilhas de pé de gato no pó do chão, e como esse tapetinho aqui parecia confortável e acolhedor... sono sono sono sono....

Quando na volta o gato viu o sujeito no seu tapete preferido não teve dúvidas e miou. Mas lacônico que era, não soltou sequer um miau, foi quase um mi, e o sujeito nem se mexeu. Ou ainda, mexeu, porque parecia estar tendo pesadelos terríveis, mas acordar que é bom nada.

E João teve esse sonho, em que era quem era, estava onde estava e procurava quem não podia ser encontrada, e pegava no sono em um tapete feio e tinha pesadelos, mas nesse tinha um gato olhando pra ele com cara de quem vai fazer maldade, ou que ia dizer alguma coisa, mas o gato abriu a boca só por um segundo e disse mi. Como assim mi, desesperou o joão do sonho, querendo entender o sentido oculto por trás de tão curto miado e levantou e correu atrás do bichano.

João do sonho tropeçou e no susto decorrente acabou acordando para a mesma cena que o sonho, e de quebra amaldiçoou todos os sábios chineses e as borboletas, incluindo os japoneses, que são descendentes distantes dos chineses, as lagartas, que são antecessoras das borboletas, e obviamente os furacões em continentes distantes, que como todos sabem são causados por alguma maldade intrínseca das borboletas.

O gato com cara de quem comeu e não gostou (pra samabaia ninguém nunca pergunta nada) e João pensou em amaldiçoar também os gatos, os egípcios e os ingleses, mas pensou melhor, já que maldição gera karma ruim.

Já era noite, apagada de estrelas como a casa de luzes, e João achou a saída com extrema dificuldade, auxiliado talvez pelo barulho do vento, que já estava na hora de fazer algo útil além de distorcer palavras e polinizar abelhas e torcer juncos e arrancar carvalhos.

Do lado de fora, a luz amarelada dos postes emanava um quê de Van Gogh, e a poeira da casa, bem instalada entre pálpebras, dava uma coceira cega.

João mexeu nos bolsos, e sentiu algo que parecia uma samambaia depois de ser processada por um estômago. Começou a suar frio.

João saiu correu andou. De repente estava lá.

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